Em que consiste o projeto anunciado por Boric no Chile para perdoar a dívida universitária, uma de suas promessas mais emblemáticas (e as dúvidas que gera)
Era uma de suas principais bandeiras quando, em 2011, como presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile, liderava as manifestações estudantis multitudinárias.
Treze anos depois, agora como Presidente da República, Gabriel Boric anunciou nesta segunda-feira um projeto que busca perdoar parcialmente a dívida do Crédito com Aval do Estado (CAE), um mecanismo de financiamento para a educação superior no país que, desde 2006, permitiu um amplo aumento na matrícula, mas também gerou um alto nível de endividamento.
Em cadeia nacional, o presidente chileno detalhou um esquema com o qual pretende cumprir uma de suas principais promessas de campanha, faltando apenas alguns dias para as eleições municipais de 26 e 27 de outubro, nas quais seu governo e a oposição medirão forças.
‘Hoje o CAE é um problema para todo o Chile: para aqueles que, com muito esforço, o pagam mês a mês, para aqueles que não conseguiram pagá-lo, para aqueles que nem sequer puderam terminar seus estudos e, ainda assim, estão endividados, e também é um problema para o Tesouro. E quando os problemas afetam toda a sociedade, é uma tarefa urgente da política buscar uma solução e corrigir’, destacou Boric.
Em que consiste a proposta?
O esquema proposto pelo Presidente Gabriel Boric se divide em duas grandes áreas. Por um lado, a que encerra o CAE e cria um novo mecanismo de financiamento e, por outro, a que define um plano de reorganização e perdão parcial das dívidas educacionais.
Um total de 1.219.395 mil chilenos receberam este crédito entre 2006 e 2023. Segundo dados fornecidos pelo próprio governo, desse total, 27% estão em fase de estudo ou carência, enquanto 73% estão na fase de pagamento, universo que seria beneficiado pela medida.
O plano de perdão consiste em quatro etapas. A primeira, denominada condonación inicial (perdão inicial), será aplicada de acordo com três variáveis: 1) a condição acadêmica do devedor, ou seja, se ele já concluiu ou interrompeu os estudos; 2) se está em dia com os pagamentos e 3) o número de parcelas pagas do crédito em relação ao prazo total do mesmo.
‘A condição acadêmica e a situação de pagamento definirão o perdão de base sobre o qual, ao adicionar o número de parcelas pagas em relação ao total pactuado, será calculado o perdão inicial’, explicou o governo.
Após esse primeiro cálculo, poderá ser aplicado um segundo perdão, de caráter mensal, que estabelece que os devedores retribuam entre 1% e 8% de seu salário, com uma faixa de isenção de 500 mil pesos chilenos mensais (537 dólares). Ou seja, aqueles que ganharem menos que esse valor — que equivale ao salário mínimo — ficarão isentos.
Além disso, a proposta permite que os atuais devedores optem por pagar o valor total devido em uma única parcela. Aqueles que se inscreverem por essa via ‘receberão um perdão adicional equivalente a 25% do saldo total da dívida resultante após a aplicação do perdão inicial’.
Por último, estabelece-se um benefício tributário ao Imposto Global Complementar, ou seja, aquele pago de acordo com a renda, para premiar aqueles que já quitaram sua dívida do CAE. Esse benefício será válido por 20 anos.
Com esse esquema, segundo o próprio Presidente Boric, ‘mais de 75 mil pessoas terão sua dívida totalmente quitada e milhares ficarão protegidas pela faixa de isenção de pagamento’.
Por outro lado, o plano do governo chileno inclui a criação de um novo mecanismo de financiamento, um instrumento que exclui os bancos.
Essa nova política será chamada de Financiamento Público para a Educação Superior (FES) e permitirá que os estudantes realizem seus estudos em instituições de ensino superior chilenas que aderirem ao sistema.
Aqueles que acessarem o FES não terão que pagar imediatamente as mensalidades nem as taxas associadas aos seus cursos; farão isso somente depois de se formarem e ingressarem no mercado de trabalho.
‘Só para os 10% de renda mais alta será permitida a aplicação de um copagamento, equivalente à diferença entre a mensalidade regulamentada e a mensalidade real da instituição’, detalha o governo em um comunicado, que também destaca que o FES não estabelece requisitos econômicos ou acadêmicos para os estudantes que quiserem financiar seus estudos por essa via.
Essa retribuição dependerá da renda e será calculada como um percentual do salário, variando entre 1% e 8%, com uma faixa de isenção de cerca de 537 dólares, assim como no caso do perdão.
O que vem a seguir
Na manhã desta terça-feira, o Presidente Gabriel Boric e seu ministro da Educação, Nicolás Cataldo, assinaram o projeto de lei para concretizar essa proposta.
A norma será enviada para a Câmara dos Deputados do Congresso Nacional chileno e deverá ser aprovada por essa corporação e, depois, pelo Senado. Caso sofra modificações na segunda etapa, como costuma acontecer, o projeto terá que passar por uma terceira etapa.
Ou seja, até o momento, não está claro que a proposta do governo terá um caminho fácil para se transformar em lei a curto prazo, especialmente porque algumas normas exigirão mais de 50%+1 dos votos no Congresso Nacional, onde Boric não tem maioria.
Além disso, o presidente tem pouco mais de um ano para tramitar a norma antes das eleições presidenciais de novembro de 2025.
De qualquer forma, o presidente Boric mencionou que já está disposto a flexibilizar suas posições em relação à sua proposta original, que tinha um alcance mais universal, o que se estenderá para a tramitação legislativa.
‘O ingresso da iniciativa é feito com a consciência de que o projeto, tal como o imaginávamos, sofreu modificações, e ficamos contentes que seja assim. Se alguém nunca mudasse sua posição inicial, a política não teria sentido’, disse ele.
Em conversa com a BBC Mundo, o ministro da Secretaria Geral da Presidência do Chile, Álvaro Elizalde, afirma: ‘Esperamos que o Congresso apoie amplamente o projeto de lei que acaba com o CAE, uma vez que beneficia os jovens e suas famílias, que verão desaparecer ou aliviar significativamente sua dívida, bem como os futuros estudantes’.
‘É um projeto que atende a uma necessidade social importante sem afetar outras prioridades orçamentárias como segurança, saúde e moradia. O projeto consagra uma maior eficiência no gasto público, excluindo os bancos do financiamento da educação superior e aliviando os devedores’, acrescenta.
As dúvidas que surgem
O projeto levanta várias dúvidas. E não demoraram a aparecer. Tanto que o próprio presidente Boric abordou algumas delas em seu discurso após assinar a mensagem presidencial que será enviada ao Legislativo.
Uma das principais dúvidas é de caráter político. Na oposição a seu governo — composta pela direita e centro-direita — já surgiram vozes que apontam que a proposta do presidente tem motivações eleitorais.
Isso ocorre devido às mencionadas eleições municipais de 26 e 27 de outubro, que são vistas como um termômetro para as eleições presidenciais de 2025.
Além disso, a oposição tem advertido que a prioridade da população é a crise de segurança que afeta o país, onde os crimes violentos têm aumentado.
‘Há quem diga que isso não é necessário ou que não resolve um problema prioritário… Eu quero lhes dizer uma coisa: os governos podem caminhar e mascar chiclete (…). Sabemos que hoje a segurança é uma das principais preocupações do nosso povo (…), mas o governo precisa ter seus olhos e suas ações em todas as frentes’, disse o chefe de Estado.
Nesse sentido, Boric fez um apelo para que esse debate não se torne uma disputa pequena entre seu governo e a oposição. ‘Muitos nos convidaram a abandonar algumas dessas reformas, mas somos persistentes’, disse.
Outro elemento que tem gerado dúvidas, principalmente porque o governo ainda não deu detalhes, é como será financiado o perdão de dívidas e a criação do novo serviço FES.
A apresentação do projeto de perdão de dívidas, de fato, foi adiada várias vezes durante o mandato de Boric. Em alguns setores de sua administração, inclusive, era visto como algo inviável após a rejeição da Reforma Tributária em 2023.
No governo, no entanto, explicam que o Estado já teve que desembolsar mais de US$9 bilhões para financiar o CAE, de modo que um melhor gerenciamento desses recursos permitirá viabilizar a nova proposta.
‘É uma medida autossustentável’, destacam na administração de Boric.
Outro aspecto que gerou críticas, levantadas pela imprensa local, é que a medida poderia acabar beneficiando os grupos de renda mais alta e, por conseguinte, afetando o déficit nas instituições de ensino superior.
O reitor da Universidade Católica do Chile, Ignacio Sánchez, valorizou o fato de que a proposta do governo não se trata de um perdão universal.
No entanto, também declarou ao jornal El Mercurio que ‘o que é preocupante na mensagem e no projeto é que só se permita o copagamento para os 10% de maior renda (…). Isso já acontece com os estudantes contemplados pela gratuidade, e querem extrapolar isso aos outros decis, o que vai aprofundar o déficit das instituições’.
O ex-ministro da Educação do governo de Sebastián Piñera, Harald Beyer, expressou uma preocupação similar ao mesmo jornal, afirmando que ‘o aspecto mais complicado é que estenderiam os critérios de gratuidade aos nove decis de renda’, o que, em sua opinião, ‘coloca as universidades em posições mais instáveis’.
Sobre isso, o ministro da Educação de Boric disse à BBC Mundo que sabe que o projeto enfrentará uma longa discussão: ‘Por exemplo, sobre a questão das mensalidades, que é algo que alguns reitores levantaram. No entanto, muitas universidades serão beneficiadas por esse instrumento porque passarão a ter uma mensalidade regulada em vez da de referência e, além disso, não precisarão mais cobrir a execução de garantias’, afirmou Nicolás Cataldo.
Em relação às dúvidas sobre o financiamento, a autoridade chilena destacou que ‘como disse o ministro da Fazenda, Mario Marcel, isso não terá um gasto maior do que o que está sendo atualmente suportado pelo tesouro’.
Fonte: BBC News Mundo.
Tradução própria.