Um pedacinho do mar no meio do cerrado: aquarismo cresce em Brasília
O aquarismo é um hobby em constante ascensão e permite que os brasilienses tenham biomas diferentes no Planalto Central
O oceano mais próximo de Brasília é o Atlântico, que banha a costa brasileira. Para mergulhar na água salgada, os brasilienses precisam se deslocar, no mínimo, 1.118 quilômetros até o Rio de Janeiro, litoral que mais se aproxima do Planalto Central.
Mas algumas pessoas encontraram uma maneira de driblar a distância e ter um pedacinho do mar dentro de casa. São os aquaristas marinhos, que, em meio a testes de salinidade e medições dos níveis de cálcio, magnésio, reserva alcalina, nitrato e fosfato, entre muitos outros, se dedicam a manter, em uma caixa de vidro, as exatas condições encontradas no mar.
É quase possível, ao comparar uma amostra da água de um aquário bem cuidado com uma amostra do oceano, confundir-se sobre qual é a original. As luminárias buscam reproduzir a intensidade que a luz do sol atinge os peixes e os corais, e termostatos garantem que a temperatura não destoe e prejudique os animais.
Embora manter um aquário e ter um Nemo — um peixe-palhaço, um dos mais famosos do mundo — para chamar de seu possa parecer complexo, a ciência por trás do aquarismo tem conquistado os brasilienses, que cada vez mais mergulham nesse universo.
O Pinterest Predicts 2024, pesquisa de tendências da plataforma, mostrou que os peixes são os pets do momento, e o aquarismo é um hobby em ascensão. Os millennials, geração nascida no fim da década de 1980 e primeira metade dos anos 1990, estão entre os principais fãs do filme Procurando Nemo, lançado em 2003 e, junto com a geração X, os nascidos entre 1970 e 1981, são as pessoas que mais investem na criação de aquários de plantas e de animais.
Um dos motivos apontados pelos lojistas e criadores para o crescimento na procura pelo hobby foi a pandemia. Os aquários permitem a criação de um bioma único na sala de casa. Mesmo com espaço limitado, essa facilidade, unida às características terapêuticas dos aquários, fez deles elementos perfeitos para ajudar na distração e na saúde mental durante o isolamento social.
Dados levantados pelo Instituto Pet Brasil (IPB), em 2020, mostraram um aumento de 2,6% na quantidade de peixes ornamentais no Brasil. A população desses animais em casas foi de 19,4 milhões para quase 20 milhões, isso no início do isolamento. Os pesquisadores ressaltam que esse número é, muito provavelmente, subdimensionado, uma vez que é mais difícil calcular o número de peixes ornamentais. Dados do IBGE do mesmo ano apontavam que cerca de 11 milhões de brasileiros tinham aquários em casa.
Brasília aquática
Uma das referências em aquários marinhos na capital, a loja Fish In a Box tem 12 anos de existência e seus tanques cheios de moluscos, corais, peixes e crustáceos são um atrativo para os aquaristas e costumam despertar a curiosidade de quem passa pela fachada do estabelecimento.
André Luís Rodrigues Torres Moura, 38 anos, é biólogo e sócio-proprietário da loja, onde passa a maior parte dos seus dias, não só trabalhando, mas conversando com os clientes sobre aquarismo e curtindo os diversos animais que têm no local.
Com esse contato diário, ele nota as mudanças no mercado de Brasília. Durante a pandemia, por exemplo, percebeu um aumento não só no número de aquaristas, mas também de lojas voltadas para esse universo. “Foi bacana, era uma coisa que ia ocupar a mente enquanto a pessoa cuidava e fazia os testes, e, ao mesmo tempo, distrair e relaxar durante a observação. Era algo para fazer dentro de casa, fugindo dos aparelhos eletrônicos.”
Outro ponto que o biólogo acredita influenciar no alto número de aquaristas na capital é a distância do mar. “Como estamos muito longe, acho que damos mais valor e nos encantamos mais. Uma vez, foi feito um levantamento que mostrou que no litoral costuma ter menos aquaristas”, comenta.
A internet também facilitou o aumento de aquaristas, com preços mais acessíveis e a possibilidade de os próprios comprarem peixes de outras cidades, que são entregues por serviço aéreo. Os valores mais em conta, a facilidade em encontrar informações, produtos e animais e as conversas com outros entusiastas também estão entre os fatores que André enxerga como responsáveis pela popularização do hobby.
Entre os principais atrativos da prática, André cita a vasta gama de possibilidades. Os aquários podem ser de vários tamanhos, desde pequenos quadrados de 50cm — o que permite que mesmo quem possui pouco espaço disponível tenha o seu pedacinho de mar ou rio — até enormes e impressionantes tanques de dezenas de metros.
Os formatos podem atender às demandas do aquarista, podendo ser até mesmo personalizados e integrados ao ambiente. Além disso, existem os diferentes tipos — os marinhos, de água-doce, plantados e os paludários, que têm uma parte submersa e outra vertical, onde ficam plantas.
A partir dessa escolha, vem as diferentes espécies. “É possível ter um aquário marinho só de corais ou com uma única espécie de peixe, o que também pode ser feito nos doces, com apenas plantas ou peixes específicos. Dentro do aquarismo existem diversos nichos que podem ser explorados”, completa.
Além da diversidade e dos benefícios para a saúde mental, os aquários são uma alternativa para pessoas com alergia a outros animais, como cachorros e gatos, e costumam ser o primeiro pet de muitas crianças. “Os pais vão na loja e dão um peixinho para a criança aprender a ter responsabilidade e começar a cuidar de um pet até terem outros maiores e que exigem outros tipos de cuidado”, explica.
Entre hobby e vocação
Antes de ser biólogo e sócio-proprietário da Fish in a Box, André se tornou e continua sendo um aquarista. Com 11 anos, ele ganhou da mãe o primeiro aquário de água doce. Na época, era bem mais difícil encontrar informações sobre o tema e ele colecionava fascículos vendidos em bancas de revistas e que saíam uma vez por semana. “Eu fui me encantando cada vez mais, conhecendo sobre os animais e isso se tornou muito importante na minha vida”.
O pai, militar, foi realocado e eles precisaram se mudar, período em que André ficou sem nenhum aquário. Aos 15 anos, de volta à capital, resolveu se aventurar um pouco mais e montou o primeiro aquário plantado. A pesquisa e o fascínio continuavam e aos 18 ele montou, pela primeira vez, um marinho.
Com o tanque usado de um amigo que não queria mais, equipamentos bem simples e participando de fóruns na internet, ele foi incrementando o hobby. Na faculdade, escolheu fazer biologia, um curso que o aproximava de sua paixão.
Enquanto estudava e fazia consultorias ambientais, começou a trabalhar também em uma loja de aquários, o que o ajudou a aumentar seu tanque para um de 450 litros. “Aí eu me empolguei, resolvi melhorar meu sistema, vendi esse e montei um de mil litros — do zero e como eu queria”, conta.
Conversando com um amigo e sentindo falta de mais lojas especializadas em Brasília, fazendo com que, muitas vezes, ele precisasse comprar insumos em São Paulo, surgiu a ideia de abrir a Fish in a Box. A empresa nasceu em 2012 e tinha um foco maior nas vendas on-line, mas as pessoas gostavam de visitar e ver os animais, e a dupla acabava atendendo muitos clientes com hora marcada. Dois anos depois, essa demanda fez com que os sócios abrissem uma loja maior, com mais visibilidade e atendimento ao público.
A ideia, segundo André, era, além de ganhar dinheiro trabalhando com o que gosta, ser um ponto de divulgação e incentivo do hobby, o que ele considera que foi, e continua sendo, o objetivo. O número não só de clientes fixos e de consultoria, mas de pessoas que aparecem na loja eventualmente e têm aquários está sempre crescendo.
Para unir a comunidade de aquaristas e promover uma interação, além de divulgar informações que garantem a saúde de um aquário, a Fish in a Box promove encontros, além de workshops e palestras com especialistas daqui e de outras cidades.
Doce água doce
Engana-se quem pensa que apenas os aquários marinhos fazem sucesso. Os tanques de água doce, bem como os plantados e os paludários ou aquaterrários, que incorporam elementos aquáticos e terrestres, também têm uma vasta gama de criadores pela capital. André Shigueo, 35, é dono das lojas Kawa Fish, na 402 Sul e na Rua Manacá, em Águas Claras, que, embora tenham também peixes e produtos marinhos, são focadas nas criações de água doce.
Ele percebe um público diverso em Brasília, que gosta de todo tipo de aquário. “Desde que abri a primeira loja, em 2014, a quantidade de pessoas que montam aquários é crescente.” A ideia por trás da loja era ofertar uma variedade maior de água doce, trazendo para Brasília o que os entusiastas viam em vídeos e fotos nas empresas do Japão, da China e da Indonésia, onde o aquarismo de água doce é muito forte.
Shigueo afirma que é complicado dizer qual tipo de aquário é mais fácil ou difícil, porque tudo depende dos elementos que a pessoa vai querer inserir e do tempo que tem para investir.”Uma facilidade do de água doce é que ele é um pouco mais resiliente. Se você fizer alguma coisa errada, vai ter uma semana para corrigir e as plantas e peixes podem resistir a esse processo; no marinho, muitas vezes, o coral não vai aguentar um dia de desequilíbrio, são mais sensíveis a essas variações”, ensina.
Tradição
Shigueo conta que o aquarismo entrou na sua vida como hobby. Amigo do sobrinho de seu Maeda, primeiro aquarista da tradicional família, começou a se encantar pelo universo aquático.”Fui influenciado e tinha essa facilidade de ver tudo que eles tinham de legal na loja. Montei meus aquários e, com esse meu amigo, acabei abrindo uma loja em Vicente Pires”, lembra.
Cinco anos depois, ele vendeu sua parte para o sócio e abriu a Kawa Fish. Outro ponto que ele observa como positivo é a parceria e colaboração entre as diversas empresas concorrentes. Os Maeda continuam sendo referência. Até em São Paulo, em conversas com fornecedores, ao dizer que é de Brasília, ele escuta sobre a família.
Hoje, além das lojas, Shigueo tem aquários em casa, onde divide o hobby com o filho de dois anos, que já adora observar os animais.
Um paludário para chamar de meu
Quer entrar no mundo dos aquários e já sair da loja com o seu montado? A Kawa Fish tem um workshop marcado para 15 de setembro, na loja da 402 Sul, onde os entusiastas poderão chegar, montar os seus paludários com tudo o que têm direito, desde troncos até plantas, e levá-los prontinhos para casa.Os valores variam de acordo com o tamanho do aquário desejado, e todas as ferramentas necessárias para a montagem e orientação fazem parte do pacote, que inclui também café da manhã e almoço para os participantes.
Quero começar!
- Segundo especialistas, o primeiro passo é decidir o tipo de aquário. Pesquise, converse com outros aquaristas e se informe. Visite as lojas e veja as variedades existentes e quais combinam mais com você.
- Faça-se perguntas como quanto tempo disponível eu tenho para fazer a manutenção? Quero passar mais ou menos tempo mexendo no aquário? Quero animais ou apenas plantas?
- Depois de escolher entre marinho, doce ou paludário, é hora de decidir o tamanho que se adequa ao espaço disponível.
- Ajuste suas expectativas. “Não se iluda com o aquário pronto de internet. Para que ele chegue naquela aparência, vai ser necessário tempo, paciência e dedicação, principalmente se for marinho com corais, que demoram mais para crescer e tomar conta do espaço”, avisa André Shigueo.
- Escute os especialistas. Shigueo e André Luís comentam que é muito comum ter clientes que querem determinado peixe que não se encaixa em seu aquário. “Nesses casos, a gente orienta. O blue tang, por exemplo, precisa de bastante espaço para ter uma qualidade de vida, como vou vender para alguém que eu sei que não vai ter o lugar ideal?”, comenta André Luís.
- Em outra situação existe a agressividade dos animais, alguns não podem ser criados junto com outros e, se o cliente insistir, pode acabar com um ou mais peixes mortos.
- Entenda que os peixes, as plantas e os corais vão crescer, então, no início, seu tanque pode parecer “vazio”, mas se encher de elementos, eles vão entrar em conflito e ficar sem espaço.
- Os peixes são animais, assim como cães e gatos, e requerem cuidados. Os aquaristas ressaltam que os aquários não são meros objetos de decoração e exigem dedicação e cuidado com a qualidade de vida dos animais.
- Os corais, embora possam não parecer, também são animais. Tenha consciência de que está criando seres vivos que merecem ser bem tratados.
De repente, nove!
Ainda iniciante no mundo do aquarismo, a advogada Daniela Duarte, 39, já começou empolgada. Ao todo, ela, o marido, o também advogado, Markos Duarte, 50, os enteados, João, 16, e Manuela Duarte, 11, e a filha, Alice Spada, 19, têm, em casa, nove aquários, todos de água doce.O maior deles fica na cozinha, um dos cômodos em que ela passa bastante tempo, e funciona como um ponto de união para toda a família.
Dani se envolveu no mundo do aquarismo em fevereiro deste ano, quando uma amiga, aquarista há bastante tempo, lhe deu umtanquepara ajudá-la a relaxar e cuidar da saúde mental. A advogadaestava desde junho do ano passado em licença-saúde por tempo indeterminado, depois de receber um diagnóstico de burnout, e quando começou a cuidar dopresente, sentiu sua vida mudar e a saúde começar a se estabilizar.
Além da beleza dos ambientes, garantir qualidade de vida e se responsabilizar pelos peixinhos, cuidando e alimentando, foram pontos cruciais no tratamento da advogada, que depois de um mês cuidando dos aquários se sentiu apta para voltar ao trabalho.”Isso me deu um novo ar até realizei o sonho de montar um aquário grande na cozinha, que cobre toda a janela e nos reúne e agrega”, celebra.
Daniela se envolve e se diverte criando diferentes paisagens e adora observar as plantas se desenvolvendo e crescendo dentro dos tanques. O movimento que elas fazem na água é, ao mesmo tempo, uma terapia e um momento de apreciar a exuberância da natureza. Os troncos de diversos formatos e os peixes, de preferência os neons e com cores mais exóticas, completam os cenários.
Apesar de estarhá pouco tempo nesse universo, Daniela já participou de seu primeiro concurso de aquapaisagismo e se prepara para os próximos. “Estudei bastante e vou me especializando. Além de querer manter tudo bonito e harmônico, me preocupo com o ambiente e a qualidade de vida dos peixes, que são pets, assim como meus cachorrinhos, e merecem cuidados e carinho”, reforça.
Markos, que teve aquários na infância, não só apoiou o hobby da mulher como entrou de cabeça. “Virou uma coisa da família, um atrativo que nos ajudou a fortalecer conexões com nossos adolescentes, que nessa idade acabam sendo mais distantes”, conta.
Todos interagem com os peixes, escolhem os animais que vão se tornar parte da família. Manuela e Alice têm seus próprios aquários. O hobby familiar virou um perfil no Instagram (@mkdaquario),no qual eles dividem a sua rotina.
Nemo e Dory
O filme Procurando Nemo, lançado pela Disney em 2003, foi um sucesso e fez com que os jovens se apaixonassem pelos peixes representados no desenho, principalmente o peixe-palhaço, o Nemo, e o cirurgião patela, ou blue tang, a Dory. Até hoje, os peixes-palhaço estão entre os campeões de venda quando se trata de aquários marinhos.
Na época, houve um aumento de 40% na procura pelo palhaço e uma grande preocupação por parte de biólogos e pesquisadores, afinal, por mais que a mensagem do filme fosse, justamente, sobre não retirar os animais de seu habitat, a pesca e captura de palhaços e blue tang aumentaram.
Embora o peixe-palhaço seja facilmente reproduzido em cativeiro, a maioria dos blue tang vem do oceano. Ambientalistas e protetores de animais fazem um apelo para que os aquaristas optem por comprar peixes criados em cativeiro, visando diminuir a captura dos de recife.
Uma breve — e antiga — história
Artigo publicado na Revista Negócios Pet remonta a prática de criar peixes para contemplação aos anos 3.000 a.C, na Mesopotâmia. Evidências arqueológicas provam que os sumérios, às margens dos rios Tigre e Eufrates, tinham açudes, onde alimentavam e observavam os peixes.
Algumas centenas de anos depois, em 1.700 a.C., os egípcios antigos foram os pioneiros na criação de tanques de argila cozida com paredes de vidroem que colocavam e olhavam os peixes. Na China, na Dinastia Ming, o aquarismo se transformou em algo mais semelhante ao que vemos hoje e se espalhou pelo globo.
No Brasil, o hobby veio, oficialmente, trazido pelos franceses, no fim do século 19. No entanto, um registro escrito por um padre jesuíta menciona um tanque de peixes de observação na Bahia, em 1583. Em 1922, aconteceu a 1ª Mostra de Aquários na Exposição Internacional do Centenário da Independência, que consolidou a prática no país.
Fonte: Correio Braziliense.