A certidão de nascimento de Brasília está em Portugal

Brasília, de fato, é especial. E isso, em qualquer âmbito, seja nas artes visuais ou na sua capacidade de encantar, reconhecer isso é uma forma de preservar o passado e respeitar o futuro

O título deste artigo não é uma metáfora, é uma notícia. Boa e triste. Em 2021, todo o acervo de Lúcio Costa foi doado pela família do urbanista à Casa da Arquitectura, uma associação cultural apoiada pelo Estado português. À época, certa ou errada, a neta do inventor de Brasília alegou em entrevista a este jornal que, no Brasil, “falta uma consciência de preservação cultural. Ainda vamos chegar lá, mas, por enquanto, não temos condições”. Entre os mais de 11 mil documentos doados está o desenho original do Plano Piloto.

A notícia não deixa de ser boa. Lá estive, em 2023, para a inauguração de Siza e Oscar, para além do mar, uma exposição de fotografias minhas. Pude, então, conhecer a instituição e perceber o cuidado e os meios de que dispõe para a conservação, em ótimas condições, dessa preciosidade.

Mas a notícia é também triste. Ela nos coloca diante de nós mesmos, das nossas fragilidades, da nossa incapacidade de reconhecer, preservar e partilhar a multifacetada, polêmica, trágica, épica e rica história cultural que vimos construindo. Como deixamos escapar de Brasília aquilo que nos constituiu como espaço? E quantos outros legados, individuais ou coletivos, estamos deixando que se apaguem a cada dia?

A cidade que não respeita seu passado não tem futuro. Lúcio Costa sabia disso. Já no preâmbulo de seu Relatório do Plano Piloto vaticinava que Brasília deveria tornar-se, “além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país”. Os brasilienses, de nascimento e adoção, têm realizado esse vaticínio. Em meio a imensas dificuldades e barreiras, artistas, produtores, galeristas, curadores e gestores vêm construindo um impressionante patrimônio simbólico neste inquieto e criativo quadradinho.

Seja nas artes visuais, na arquitetura, na literatura, no cinema, no teatro ou na música, não faltam exemplos dessa afirmação. O projeto Plano das Artes, conduzido pela professora da UnB Cinara Barbosa, já mapeou mais de uma centena de espaços autônomos de artes visuais no Distrito Federal. Escritórios de arquitetura multipremiados, a prosa e a poesia de inúmeros talentos, o cinema de Vladimir Carvalho, o teatro de Hugo Rodas, o choro de Hamilton de Holanda, o rock de Renato Russo e Cássia Eller, as obras de Antonio Obá ou o som eletrônico de Alok, ao lado de muitos outros nomes de mulheres e homens, estão aí para não deixar ninguém mentir.

Por que então deixamos fechado o Teatro Nacional de Brasília e perdemos acervos cobiçados como o de Lúcio Costa? Não haverá uma resposta só. É evidente, contudo, que, de um lado, as políticas públicas de cultura têm sido incapazes de disputar, com a força devida, a difícil partilha orçamentária. De outro, salta aos olhos a omissão de nossa elite econômica. Os que aqui formaram grandes patrimônios poderiam, e deveriam, investir mais — e mais democraticamente — na preservação da memória e na expansão criativa das manifestações culturais em todo o Distrito Federal.

Não percamos de vista o que nos é peculiar. Há cidades que são obras da natureza, como o Rio de Janeiro. Outras são obras humanas, como São Paulo. Mas raras são obras de arte, como Brasília.

Fonte: Correio Braziliense

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