Quem são os autores indígenas que se destacam ao ‘expor feridas e expandir nossa visão de mundo’

Em sua obra-prima, o escritor paulista Mário de Andrade (1893-1945) descreve Macunaíma como “o herói sem nenhum caráter”.

Já nas tradições milenares do povo Macuxi, que habita regiões de Roraima, Guiana e Venezuela, Macunaíma está no mais alto panteão de deuses — e é reconhecido como um grande pajé, uma figura sábia que criou muitas coisas.

Esse é apenas um exemplo de como as histórias indígenas são pouco conhecidas do grande público e muitas vezes até substituídas, ou ignoradas, por outras narrativas.

Mas parece que as coisas estão mudando: há um movimento literário que ganha cada vez mais força ao dar voz e destaque a novos autores indígenas.

Essa é a avaliação da escritora Trudruá Dorrico, que fez mestrado na Universidade Federal de Rondônia e concluiu um doutorado em Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

Ela também realiza uma série de ações nas redes sociais — como a iniciativa “Leia Mulheres Indígenas” — e participa de eventos públicos para promover essa literatura.

“Esse movimento tenta mostrar que a vida indígena é complexa e tem um paradigma diferente do mundo moderno e ocidentalizado”, diz a pesquisadora, que é da etnia Macuxi.

“Atravessada por 500 anos de violência colonial, essa literatura consegue expor feridas, mas também faz reivindicações.”

Filha de mãe guianense e de pai peruano, Dorrico defende que “ler autores indígenas permite ter contato com contextos diversos e expande nossa visão de mundo, já que os autores vêm de comunidades, povos, biomas e regiões de todo o Brasil“.

Mas por onde começar? Quem são os escritores indígenas que vem se destacando na literatura nacional?

Durante o doutorado, Truduá Dorrico mapeou autores indígenas espalhados pelos biomas de todo o Brasil
Crédito,Arquivo pessoal Durante o doutorado, Truduá Dorrico mapeou autores indígenas espalhados pelos biomas de todo o Brasil

Cultura ancestral, histórico recente

Agora você pode receber as notícias da BBC News Brasil no seu celular

Durante as pesquisas acadêmicas, Dorrico procurou mapear as obras que já haviam sido publicadas no país por autores indígenas.

Ao longo do processo, ela identificou alguns marcos que ajudaram a fomentar esse movimento literário. E o primeiro deles foi a promulgação da Constituição Federal de 1988.

“O aparecimento dos escritores indígenas é análogo à Constituição, quando se reconheceu pela primeira vez a plurietnicidade do país e a ideia de que integrantes de povos indígenas podem ser cidadãos brasileiros e permanecer com a sua identidade”, lembra ela.

A especialista avalia que, antes de 1988, todos os projetos de integração nacional realizados por vários governos — como o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a Fundação Nacional do Índio e o Estatuto do Índio — tinham como objetivo “acabar com a identidade indígena” ao tentar incorporar esses indivíduos na sociedade brasileira.

Seguindo essa linha de raciocínio, a nova Constituição serve como um marco para entender que o indígena pode manter sua cultura e tradições, ao mesmo tempo em que é um cidadão reconhecido pelo Estado brasileiro.

“Não por coincidência, as primeiras obras assinadas por autores indígenas foram publicadas no país entre os anos 1980 e 1990”, diz Dorrico.

Entre as pioneiras, estão Oré Awé Roiru´a Ma: Todas as Vezes que Dissemos Adeus, de Kaka Werá, e Histórias de Índio, de Daniel Munduruku.

Pouco depois, no início dos anos 2000, o próprio Daniel Munduruku se tornou um dos criadores de premiações importantes que estimulam novos autores indígenas e o uso desses materiais em salas de aula — caso dos concursos Tamoios e Curumin, respectivamente.

Outro marco importante aqui foi a promulgação da lei 11.645 de 2008, que tornou “obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira” nas escolas.

“Isso democratizou a demanda por literatura indígena nas salas de aula de todo o país e estimulou professores a buscarem novas obras e leituras”, observa Dorrico.

A pesquisadora cita um quarto ponto de virada: a pandemia de covid-19.

“De repente, promotores de cultura, organizadores de eventos literários, o pessoal da universidade, estavam todos juntos na internet e houve um aumento do interesse pelos autores indígenas”, destaca a especialista.

A chegada de Ailton Krenak na Academia Brasileira de Letras em 2023 é mais um capítulo importante nesta história, uma vez que ele foi o primeiro indígena a ser eleito para integrar a instituição.

Ailton Krenak
Crédito,Getty Images Ailton Krenak é o primeiro indígena eleito para a Academia Brasileira de Letras

Mergulhar em diferentes universos

Mas como uma pessoa interessada no assunto pode conhecer mais sobre literatura indígena?

Dorrico cita três pontos que considera importantes — e o primeiro tem a ver com a ideia de acessar uma cultura diferente da sua.

“Ao ler um romance da Coreia do Sul, por exemplo, você automaticamente é colocado de um código diferente, que envolve linguagem, estrutura de sociedade, ordem do livro, vestimentas, ritmo e sons das palavras, entre outros”, compara ela.

“O mesmo acontece no contato com obras da literatura indígena, com a diferença de que elas se valem da língua portuguesa para serem publicadas”, continua a pesquisadora.

“Nessas ocasiões, você entra em contato com o desconhecido para expandir o seu mundo e mergulhar em um universo cultural diferente.”

Dorrico cita o que acontece com sua própria etnia: o povo macuxi fala o idioma karib, tem uma culinária própria, vestimentas específicas, cantos tradicionais…

Obras produzidas nesse contexto, portanto, seguem esse tecido de referências, tradições e culturas, que apresentam diferenças em relação ao resto do Brasil.

“Eu sempre convido os professores a lerem as obras de autores indígenas nessa perspectiva plurinacional”, sugere ela.

O segundo ponto levantado pela especialista envolve a oralidade (ou o costume de contar e transmitir histórias pela voz e a conversa).

“A oralidade não é um fundamento da literatura indígena. A oralidade é uma forma de sobrevivência”, diferencia ela.

“Não temos documentos escritos, porque muitos deles foram destruídos com a colonização. Nossas línguas foram perseguidas e caçadas. A oralidade foi o modo pelo qual nosso povo conseguiu manter-se vivo.”

Em terceiro lugar, Dorrico acredita que a literatura indígena precisa ser entendida a partir do paradigma de que os povos originários “nunca se divorciaram da terra”.

“Os povos indígenas são sociedades que estão conectadas com a terra, com o território e com a floresta”, diz Dorrico.

“Essa é uma relação que foi construída há muito tempo. Os indígenas reconhecem os espíritos e conversam com eles. Os sonhos são importantíssimos e constituem uma instituição séria”, afirma a pesquisadora.

“Precisamos entender que todos os autores indígenas vêm de povos que ainda são casados com a floresta e têm essa filiação milenar com a própria terra. Quando você compreende esses paradigmas, é possível entender melhor essa literatura.”

Mas isso, claro, não quer dizer que autores indígenas só escrevem sobre coisas relacionadas ao folclore ou à cultura da qual fazem parte.

“Eles têm liberdade poética para abordar tudo, e inclusive muitas vezes nem mencionar a identidade indígena. Eles falam sobre nascimento e morte, sobre criação do mundo ou histórias sobre aventuras”, diz ela.

Criança lendo um livro durante mostra sobre literatura indígena
Crédito,Rovena Rosa/Agência Brasil Pesquisadora aponta que é possível encontrar exemplos de literatura indígena em vários gêneros literários

Leia a matéria completa em BBC Brasil.